Tribunal chinês reconhece direitos autorais de artigo produzido por inteligência artificial

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Hoje escrevo sobre a recente decisão do tribunal popular do distrito de Nanshan, em Shenzhen, na China. Na ocasião, em síntese, o tribunal entendeu que um artigo produzido por um sistema de inteligência artificial (Dreamwriter, criado pela Tecent) se qualificava para proteção de direitos autorais.

A evolução da escrita?

A escrita é uma das atividades mais criativas que conhecemos. Por meio dela, somos capazes de transmitir o conhecimento entre gerações, exprimir nossas ideias, registrar dados, celebrar acordos e outorgar poderes para outras pessoas. Desde sua forma mais rudimentar, em símbolos gráficos (ideogramas), a escrita é considerada por muitos historiadores como o capítulo mais importante da evolução humana.

Só que mesmo uma atividade cognitiva com tanto potencial quanto a escrita está aos poucos sendo substituída pelas máquinas. Hoje, uma quantidade surpreendente de textos são elaborados não por humanos, mas por algoritmos de computador. A demanda por produzir mais conteúdo em menos tempo, aliada a tecnologias sofisticadas, está formando uma nova indústria: a da geração/criação automatizada de narrativas.

Mais de 90% das notícias serão geradas por algoritmos até 2027

Algoritmos cada vez mais sofisticados estão produzindo narrativas em diferentes estilos, com objetivo de agradar os mais diversos públicos A tecnologia avança de forma tão veloz que, de acordo com Kristian Hammond, fundador da Narrativa Science, mais de 90% das notícias serão geradas por algoritmos até 2027. À exceção do algoritmo, que dependerá de intervenção humana, a maior parte das notícias será criada pelas máquinas.

A empresa de Hammond é especializada em geração automatizada de narrativas. A equipe da Narrativa Science desenvolveu um software que escreve com eficiência conteúdos que levam horas ou dias para serem produzidos por humanos. O conteúdo dos textos, aliás, parece humano. Ao ler dois trechos similares, dificilmente se consegue distinguir qual deles foi escrito por um humano e qual foi produzido pelo algoritmo.

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Conforme Hammond, mais de 90% das notícias serão geradas por algoritmos até 2027

É possível diferenciar textos escritos por humanos e por algoritmos?

Repare, por exemplo, nos dois trechos a seguir (em inglês), citados num artigo do The New York Times:

Things looked bleak for the Angels when they trailed by two runs in the ninth inning, but Los Angeles recovered thanks to a key single from Vladimir Guerrero to pull out a 7-6 victory over the Boston Red Sox at Fenway Park on Sunday.

The University of Michigan baseball team used a four-run fifth inning to salvage the final game in its three-game weekend series with Iowa, winning 7-5 on Saturday afternoon (April 24) at the Wilpon Baseball Complex, home of historic Ray Fisher Stadium.

Você consegue apontar qual deles foi escrito por um autor humano e qual deles foi produzido pelo algoritmo? Embora o percentual de acerto seja 50-50, a maioria das pessoas não consegue afirmar com certeza. Em suma, o primeiro deles foi produzido por um algoritmo, enquanto o segundo por um autor humano. (Caso queira saber mais sobre a ferramenta, faça este QUIZ e veja se consegue diferenciar outros trechos de notícias).

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Intrigado com a possibilidade, Christer Clerwall, pesquisador de produção de mídia digital na Universidade de Karlstad (Suécia), conduziu um estudo para saber se era possível identificar, sem muito esforço, uma notícia escrita por um autor humano de uma produzida por um algoritmo. Após apresentar diversos trechos a um grupo de pessoas, Clerwall constatou que eles não conseguiram distinguir a diferença entre uma e outra:

Não há (com um exceção) diferenças significativas na forma como os dois textos são percebidos pelos inquiridos.

Empresas como a Narrativa Science estão enxergando potencial neste mercado de geração automatizada de narrativas e aplicando algoritmos para criar conteúdos escritos. A Forbes, aliás, é uma das revistas que usa essa tecnologia para produzir relatórios financeiros. Já a Associated Press usa a solução da Automated Insights, especializada em geração de linguagem natural de autoatendimento, para obter resultados semelhantes.

Direitos autorais e inteligência artificial

Aliás, por falar em relatórios financeiros, o tribunal popular do distrito de Nanshan, na cidade de Shenzhen (China), recentemente decidiu que um artigo financeiro produzido por um sistema de inteligência artificial (IA) se qualifica para proteção de direitos autorais. O processo judicial envolveu, de um lado, a empresa Tencent, seu sistema de IA Dreamwriter; e, de outro, a Shanghai Yingxun Technology Company (SYTC).

Em resumo, a Tencent ajuizou uma ação indenizatória por violação de direitos autorais contra a SYTC. O argumento central foi de que a SYTC copiou um relatório financeiro produzido pelo programa Dreamwriter, capaz de produzir artigos sobre clima, esportes e mercado de ações a partir de algoritmos desenvolvidos pela Tencent. O relatório gerado pelo software foi disponibilizado, sem autorização, no site da SYTC.

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Só para ilustrar: o WIPO define direito de autor como sendo a proteção da criação da mente humana

Ao analisar o caso, o tribunal chinês entendeu que a estrutura do artigo desenvolvido pelo programa era razoável, apresentando lógica clara e certa originalidade. Conforme o tribunal chinês, a forma de expressão do relatório estava em conformidade com os requisitos exigidos para trabalhos escritos. Além disso, o conteúdo revelou que houve seleção e análise de informações e dados relevantes do mercado de ações.

Direitos autorais e criações da mente humana

Condenada a pagar ¥ 1.500 (US$ 216,02) à Tencent por perdas econômicas e proteção de direitos de autorais, a SYTC provavelmente recorrerá da decisão. O entendimento do tribunal chinês cria precedente relevante no âmbito da propriedade intelectual, contrariando a orientação da World Intellectual Property Organization (WIPO), que define direito de autor como sendo a proteção da criação da mente humana.

No Brasil, o art. 7º da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais) dispõe que são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. Sem dúvida, os debates em torno da decisão chinesa devem assumir novos contornos em breve, abrangendo também obras artísticas, composições musicais e pinturas.

Enfim, em sua opinião, artigos produzidos por inteligência artificial devem ser protegidos por direitos autorais?


Continue explorando o assunto

GONÇALVES, Lukas Ruthes. Tribunal Chinês decide que aplicação de IA pode sim ser autora. JOTA, Brasília, 30 jan 2020.

YAN, Li. Court rules AI-written article has copyright. 9 jan 2020. ENCS, Pequim, 9 jan 2020.


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Bernardo de Azevedo

Bernardo de Azevedo

Advogado. Doutorando em Direito (UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Computação Forense e Segurança da Informação (IPOG). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade FEEVALE e da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
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