O direito ao esquecimento é compatível com a tecnologia blockchain?

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O ano é 2030. Ninguém imaginava que, 15 anos antes, o movimento de empresas de blockchain instalado no país seria capaz de erradicar, em poucos anos, os serviços notariais. Certamente ninguém cogitava, em 2015, que os famosos “tabelionatos” não mais seriam responsáveis pela autenticação de documentos. Mas a tecnologia blockchain mudou tudo – definitivamente.

As empresas privadas de blockchain suprem agora todas as necessidades notariais da população. Serviços de autenticação de documentos nunca foram tão demandados. O cidadão nem precisa sair de casa para reconhecer firma, já que contrata o serviço do próprio smartphone. Não há dúvida de que as soluções em blockchain facilitaram o acesso da população a serviços essenciais.

As startups de blockchain, instaladas no país a partir de 2015, muito falavam sobre desburocratizar os contratos e torná-lo mais seguros. Elas estavam certos sobre a segurança. Os contratos digitais são extremamente seguros. Os registros, desde aquela época, são imutáveis. E o que começou com contratos se estendeu também ao Poder Judiciário. Os atos judiciais são todos gravados com blockchain.

O drama de Arnaldo

Arnaldo estava desnorteado. Foram anos aguardando o desfecho do processo criminal a que respondeu para ser condenado ao final. Seus advogados tentaram de tudo, protocolaram todos os recursos possíveis, mas nada adiantou. Arnaldo estava condenado e nada podia fazer a respeito. Não existiam mais recursos disponíveis. Todas as “cartas” tinham sido utilizadas por ele e seus advogados.

Como estudioso das leis e da jurisprudência, Arnaldo lembrou de uma decisão de 2013, do STJ, que concedia o direito ao esquecimento a um homem que teve sua vida devassada por um programa televisivo. Pensou, por um instante, em usar a decisão paradigmática para seu caso. Como seria capaz de seguir sua vida normalmente, com a condenação criminal gravada em blockchain?

Arnaldo se indagou se o direito ao esquecimento teria a mesma aplicabilidade que em 2013. Afinal, todos os registros judiciais usavam agora blockchain. Tudo era gravado com essa tecnologia: citações, intimações, notas de expediente… Mesmo se aguardasse uma década, sua condenação continuaria acessível a todos que desejassem buscar? Enfim, teria sua vida acabado por “culpa” do blockchain?

O direito ao esquecimento é compatível com a tecnologia blockchain?

Este rápido exercício mental foi pensado para fazer o leitor refletir sobre a compatibilidade (ou não) do direito ao esquecimento com a tecnologia blockchain. Esse breve passeio no ano (não tão distante) de 2030 tem, é claro, uma razão de existir. Em suma, muitos juristas questionam se, no futuro, quando essa tecnologia virar mainstream, o direito ao esquecimento terá aplicação efetiva.

Hoje, a blockchain está sendo usada como meio de contabilidade eletrônica online, criando registros imutáveis (históricos de transações que não podem ser alterados). Na prática, a tecnologia evita fraudes em negócios e transações virtuais. Sendo assim, a tendência é que se utilize cada vez mais blockchain em contratos, documentos e até mesmo na esfera judicial.

Desse modo, a pergunta que fica é: o direito ao esquecimento é compatível com a blockchain? Afinal, as regras do right to erasure (ou right to be forgotten) elencadas pela General Data Protection Regulation (GDPR) – e, por extensão, aplicáveis à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – são conciliáveis com essa tecnologia? Embora muitos pensem que não, o instituto é compatível com a blockchain.

Leia também:

8 projetos de lei sobre o direito ao esquecimento no Brasil

Tudo depende de como utilizamos a tecnologia

Enfim, para responder a pergunta do título, convidei meu amigo Fausto Vanin, profissional de excelência em transformação digital e um dos maiores especialistas em blockchain do Brasil, para compartilhar suas impressões com vocês:

A blockchain é uma tecnologia totalmente compatível com marcos regulatórios como a GDPR e a LGPD. Tudo depende de como utilizamos a tecnologia. Seu grande potencial está em, por exemplo, garantir que os registros ao longo do tempo sejam legítimos e confiáveis, muito mais do que armazenar dados que exponham a identidade do indivíduo.

É como se a blockchain permitisse separar o selo de verificação assinado pelo tabelião dos dados constantes no documento. O selo assinado é um registro histórico que fica, mas os dados podem ser removidos, caso o indivíduo recorra a seu direito ao esquecimento.

Blockchains são redes distribuídas de confiança: redes, pois conectam múltiplos atores que trabalham por um determinado fim; distribuídas, pois a confiabilidade dos dados não fica restrita apenas a um elemento da rede; de confiança, pois é na tecnologia que estão representados elementos-chave para o bom funcionamento dessa rede, como garantir o direito ao esquecimento.


Continue explorando o assunto

AZEVEDO E SOUZA, Bernardo de. Direito, tecnologia e práticas punitivas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017.

PECK, Patricia; ROCHA, Henrique. Advocacia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.


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Bernardo de Azevedo

Bernardo de Azevedo

Advogado. Doutorando em Direito (UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Computação Forense e Segurança da Informação (IPOG). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade FEEVALE e da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
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