Estima-se que a Amazon tenha vendido mais de 100 milhões de Kindles desde 2007, quando o primeiro modelo foi lançado. À época, muitos especialistas chegaram a jurar que no futuro ninguém jamais leria um livro em uma minúscula tela brilhante. Para a surpresa dos experts, milhões de leitores passaram a adotar novos dispositivos de leitura, como os próprios Kindles, os tablets, os pads e até mesmo os smartphones.
Choque cultural
Há quem sustente que estamos vivendo um verdadeiro choque cultural. De um lado, há o povo do livro, que segue as normas imortalizadas nas obras e privilegia soluções regidas por leis. De outro, há o povo da tela, que lê palavras em páginas na Internet, visualiza – de maneira não linear – as letras de algum videoclipe disponibilizado no YouTube e enxerga a tecnologia como a solução para todos os problemas.
Ao mesmo tempo, há também uma batalha travada dentro cada um de nós. (Eu, particularmente, adquiri um Kindle há alguns anos. Lembro de ter gostado da experiência de leitura no início, mas, com o passar dos meses, comecei a privilegiar a aquisição de livros físicos em detrimento dos digitais. O Kindle foi esquecido. Quando fui viajar no final de 2019 e quis levá-lo, encontrei o aparelho com a bateria descarregada e cheio de pó.)
Muitos já afirmaram que os livros físicos deixarão de existir um dia. Ninguém pode prever o futuro, mas é difícil imaginar como os livros digitais poderão substituir completamente os livros físicos. É mais provável que ambos coexistam. De todo modo, parece inegável que o avanço da tecnologia abrirá caminhos para novos formatos de leitura. E talvez não exista pessoa mais adequada para falar sobre o assunto do que Kevin Kelly.
No futuro, os livros atingirão a liquidez
Como sabemos, os e-books têm uma série de limitações. Empresas como Google e Amazon não autorizam os leitores a copiar grandes trechos das obras ou manipular os conteúdos como bem entendem. Na visão de Kevin Kelly, contudo, o cenário está prestes a mudar. No livro Inevitável (2016), o autor sustenta que, mais cedo ou mais tarde, os textos dos e-books se libertarão dessas amarras e atingirão a extrema liquidez.
O futuro da leitura imaginado por Kevin Kelly envolve a superação de três estágios (ou fases). No primeiro estágio, cada livro será transformando num evento em rede. No segundo, todos os livros do mundo estarão interconectados. Já no terceiro e último estágio, todo o conhecimento humano será reunido em uma espécie de “Biblioteca de Tudo”. Em suma, a seguir exploro cada um dos estágios idealizados pelo autor:
Estágio 1: transformando cada livro num evento em rede
Conforme Kevin Kelly, se hoje podemos sublinhar trechos de um e-book pelo Kindle, amanhã poderemos vincular trechos sublinhados por meio de links:
Haverá como vincular uma frase da obra que você está lendo a uma passagem de outra narrativa já lida, uma palavra específica ao verbete do dicionário ou determinada cena descrita em um livro a sua encenação cinematográfica. – Kevin Kelly
Essa densa rede de hiperlinks entre diferentes livros transformará cada um deles num evento em rede. De acordo com Kevin Kelly, as obras não mais ficarão isoladas, independentes uma das outras, nas prateleiras ou estantes. Seremos capazes de “linkar” palavras com portais de conteúdo, citações famosas, trechos de livros, decisões judiciais, entendimentos jurisprudenciais, além de nossos comentários e impressões.
Estágio 2: interconectando todos os livros do mundo
Por mais surpreendente que a ideia pareça, o autor acredita que esse é apenas o primeiro estágio. A revolução virá logo depois, com a inter-relação de documentos. Conforme o autor, será possível interconectar todos os livros do planeta e criar links bidirecionais. Neste universo imaginado pelo autor, todos os bits fundamentarão uns aos outros, e todas as páginas serão capazes de ler umas às outras:
A verdadeira magia acontecerá no segundo ato, quando todas as palavras de todos os livros serão vinculadas por meio de links cruzados, agrupados, citados, extraídos, indexados, analisados, anotados, comentados e incorporados à cultura, com mais profundidade do que nunca. – Kevin Kelly
A melhor forma de mentalizar como esta revolução acontecerá é imaginar cada livro como se fosse uma página da Wikipédia. Hoje, qualquer página da enciclopédia colaborativa contém ao menos uma palavra marcada em azul, representando um hiperlink que, ao ser clicado, conduz o usuário a outro conceito apresentado no site. Esse aspecto, aliás, já torna a Wikipédia o primeiro livro em rede do mundo.
Mas o gênio criativo de Kevin Kelly vai além. O autor acredita que, com o tempo, todas as páginas estarão saturadas de links azuis, interconectando referências para cada palavra de cada texto existente na enciclopédia. De acordo com ele, os e-books do futuro serão como páginas da Wikipédia repletas de trechos sublinhados (hiperlinks), que conduzirão os leitores a uma infinidade de novas descobertas.
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Estágio 3: construindo a “Biblioteca de Tudo”
Mas há ainda um aspecto mais deslumbrante do futuro imaginado por Kelly, que envolve a construção de uma versão aprimorada da Biblioteca de Alexandria. Concebida em 300 a. C. para acomodar todos os pergaminhos que circulavam no mundo conhecido, a estrutura chegou a conter meio milhão de documentos. De acordo com as estimativas, a Biblioteca de Alexandria reuniu 70% de todos os registros produzidos na época.
Hoje, nem o maior edifício do mundo poderia acomodar todo o conhecimento produzido pela humanidade. O mesmo não se pode dizer da “Biblioteca de Tudo” imaginada por Kevin Kelly. A estrutura – que não exigiria um lugar, mas um não-lugar – conterá a presença líquida de todas as obras da história. Ela reunirá todos os livros jurídicos já escritos, todas as leis já publicadas e todos as decisões judiciais já disponibilizadas.
Conforme Kelly, à medida que se ligam uns aos outros, os livros formarão um gigantesco metalivro, reunindo em um só lugar – e, paradoxalmente, em todos os lugares – todo o conhecimento da humanidade. Todos os documentos relacionados a qualquer bibliografia estarão disponíveis, em todas as línguas, em uma única rede textual. Será o início de uma biblioteca universal – uma “Biblioteca de Tudo”. Tudo estará conectado.
Seremos capazes de aprimorar o Direito no futuro?
Enfim, ninguém pode prever o futuro – nem mesmo alguém com o gênio criativo de Kevin Kelly. Mas, se sua previsão eventualmente se concretizar, as sinapses resultantes da inteligência coletiva talvez nos ajudem a encontrar as respostas para as perguntas que sempre fizemos. Ou, quem sabe, nos ajude a aprimorar o campo do Direito, repensando determinadas práticas que, às vezes, mais agravam que resolvem as demandas judiciais.
Continue explorando o assunto
KELLY, Kevin. Inevitável: As 12 forças tecnológicas que mudarão nosso mundo. São Paulo: Alta Books, 2017.
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