O possível adjacente: o Brasil está preparado para o Direito 4.0?

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O possível adjacente (the adjacent possible) é um conceito desenvolvido pelo biólogo teórico Stuart Kauffman para designar as combinações de primeira ordem alcançáveis na sopa primordial – termo que representa a mistura teórica de compostos orgânicos que teria originado a vida na Terra. Para compreender melhor o conceito e suas possíveis extensões para o campo do Direito, é necessário um breve salto no tempo.

Um retorno à Terra primitiva

Graças à ciência, sabemos hoje que a Terra primitiva era dominada por moléculas básicas, como água, nitrogênio, hidrogênio e metano. Sabemos também que cada uma dessas moléculas era capaz de uma série de transformações com outras moléculas na chamada sopa primordial. Vamos pensar por um segundo em todas essas moléculas e sua possíveis combinações. Quantas combinações de primeira ordem seriam possíveis?

Quantas transformações você acredita que poderiam ser formadas espontaneamente entre essas moléculas, simplesmente colidindo umas com as outras? Centenas, milhares, milhões, talvez? É difícil precisar, mas, mesmo sem conhecimento avançado de química ou biologia, poderíamos supor que todas essas combinações seriam capazes de criar alguns elementos básicos da vida, mas não seriam capazes de criar todos eles.

Poderíamos até imaginar duas moléculas aleatórias se unindo e formando um molécula de água. Mas não conseguiríamos imaginar que essa mesma combinação originasse um girassol, por exemplo. Embora os elementos atômicos do girassol sejam os mesmos disponíveis na Terra primitiva, não seria possível criá-lo naquele ambiente. Em suma, ele é baseado em inovações subsequentes que levariam bilhões de anos para ocorrer.

Compreendendo o possível adjacente

Ao conjunto de todas essas combinações de primeira ordem – capazes de originar alguns elementos, mas não todos os elementos básicos da vida – se dá o nome de “o possível adjacente”. O conceito abrange, portanto, todas as combinações diretamente alcançáveis na sopa primordial. Ele abarca todas as reações possíveis dentro daquele universo de moléculas – um número amplo, mas, ao mesmo tempo, finito (limitado).

A maioria das formas que atualmente habitam o conjunto de ecossistemas da Terra (biosfera) não poderiam ser desenvolvidas com aquelas combinações iniciais. No caso do girassol, ele poderia, sim, ser gerado, mas não naquele momento, não na junção daqueles elementos. Assim, poderíamos dizer que a criação de um girassol, ao menos naquele momento inicial da Terra, estava além dos limites do possível adjacente.

O possível adjacente no campo das inovações

Anos após a criação do conceito, Steven Johnson teve a sacada de transportá-lo para o campo das inovações, no livro Where Good Ideas Come From (2011). Ao estudar mais as ideias de Kauffman, o escritor percebeu que o possível adjacente é um padrão que reparece ao longo de toda a evolução da vida. Conforme Johnson, a trajetória da evolução humana pode ser descrita como uma exploração contínua do possível adjacente.

De acordo com o escritor estaduniense, o possível adjacente é como se fosse um mapa das formas pelas quais o presente pode se reinventar. Mas, assim como o girassol não poderia ser criado na Terra primitiva, o presente não pode ser reinventado de todas as formas – mas apenas de algumas formas. Ou seja, o mundo é capaz de mudanças extraordinárias a qualquer momento, mas apenas certas mudanças podem acontecer.

O possível adjacente explica, por exemplo, por que inúmeras inovações tecnológicas fracassaram ao longo da história. A máquina analítica – o primeiro computador programável do mundo – foi um fracasso porque o inventor inglês Charles Babbage não dispunha das peças sobressaltantes certas na época. Babbage tinha esboçado uma máquina para a era eletrônica, quando a evolução mecânica movida a vapor ainda estava em curso.

A ideia estava certa, mas nem ambiente tampouco o momento estavam preparados para ela.

O caso do YouTube

Já o YouTube, fundado em fevereiro de 2005 por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, foi um sucesso. A receptividade foi tamanha que, em menos de dois anos, ele já era um dos sites mais visitados da Internet. Mas você já parou para pensar o que aconteceria se ele tivesse sido fundado em 1995? Será que a maior plataforma de compartilhamento de vídeos do mundo teria o mesmo sucesso se tivesse sido fundada nos anos 90?

O interessante na história do YouTube é que se os três jovens tivessem colocado a ideia em prática dez anos antes, em 1995, o projeto provavelmente teria sido um fracasso. Primeiro, porque a maioria dos usuários tinha conexões discadas. Se um download de uma imagem pequena já levava minutos em 1995, imagine um vídeo de dois minutos de duração do YouTube. Levaria nada menos que uma hora com a tecnologia da época.

Segundo, porque ainda não existia a tecnologia de reprodução de multimídia Adobe Flash. Milhões de dólares precisariam ser investidos para desenvolver todo um novo padrão de vídeo, o que prejudicaria a ideia. Ou seja, nos primórdios da Internet um site como o YouTube não estava no seu possível adjacente. Mas, com o aprimoramento da velocidade de conexão e a criação da plataforma Flash, a empresa foi um sucesso. 

A ideia estava certa, e tanto o ambiente quanto o momento estavam preparados para ela.

O possível adjacente e o Direito

Mas, afinal, qual é a relação entre o possível adjacente e o Direito?

Inegavelmente, o Direito está sendo influenciado pela Quarta Revolução Industrial – também denominada Revolução 4.0 –, que se caracteriza pela fusão de tecnologias e pelo estreitamento de limites entre os mundos físico, biológico e digital. Tecnologias como inteligência artificial e blockchain estão modificando o trabalho dos advogados e, ao mesmo tempo, trazendo questões inusitadas para as mesas dos magistrados.

O aspecto mais curioso é que, se voltarmos apenas uma década no tempo, pouco se falava no País a respeito dessas tecnologias e de todas essas transformações. Uma startup focada em soluções de inteligência artificial, blockchain ou jurimetria, que tivesse sido fundada em 2010, provavelmente teria fechado suas portas até 2015. A ideia até poderia estar certa, mas tanto o ambiente quanto o momento não estariam preparados para ela.

Da mesma forma, se eu decidisse escrever alguns textos em 2015, incentivando advogados a utilizar soluções de inteligência artificial em seus escritórios de advocacia, provavelmente ignorariam os conteúdos. Pesquiso as interseções entre o Direito e a tecnologia há mais uma década, mas, se indicasse novas tecnologias para aprimorar os serviços jurídicos há cinco anos, ao que tudo indica poucos levariam o tema a sério.

Para não ficarmos no campo do “achismo”, vamos aos dados. Uma rápida pesquisa no Google Trends – a ferramenta do Google que mostra os mais populares termos buscados em um passado recente –, revela que expressões como “inteligência artificial”, “jurimetria”, “advocacia 4.0”, “revolução 4.0”, “lawtechs” e “legaltechs” não eram tão pesquisadas/procuradas como nos dias de hoje. Em suma, confira a seguir os gráficos:

1. Interesse pelo termo “inteligência artificial” na última década (2010-2020):

o possível adjacente 01

2. Busca pelo termo “jurimetria” na última década (2010-2020):

o possível adjacente 02

3. Procura pelo termo “Advocacia 4.0” na última década (2010-2020):

o possível adjacente 03

4. Pesquisa pelo termo “Revolução 4.0” na última década (2010-2020):

5. Interesse pelo termo “lawtechs” na última década (2010-2020):

6. Pesquisa pelo termo “legaltechs” na última década (2010-2020):

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Explorando os limites do possível adjacente

Mas não estamos mais em 2010 ou mesmo em 2015. Os tempos agora são outros. Os limites do possível adjacente estão se ampliando cada vez mais, e as inovações tenológicas estão surgindo em intervalos cada vez menores. Cada descoberta está originando novos caminhos a serem explorados e novas conexões a serem descobertas. É como se estivéssemos em um grande palácio, que se expande a cada porta aberta.

De acordo com o escritor estadunidense Steven Johnson, a história do progresso cultural costuma ser a história de uma porta que leva a outra, que leva a outra…, nos permitindo explorar uma sala do palácio de cada vez. A abertura de cada nova porta pode conduzir a uma descoberta científica capaz de transformar o mundo. Ou até mesmo revolucionar um campo tão conservador e avesso à inovação como o do Direito.

Às vezes, alguém consegue ter uma ideia que nos transporta para muitas salas adiante, saltando passos extraordinários no possível adjacente. Por isso, é importante descobrir maneiras de explorar os limites de possibilidade ao nosso redor. Espero que os conteúdos deste site cumpram o papel de estimular os leitores a recombinar as peças sobressalentes de inúmeras formas, para que possam explorar ao máximo o possível adjacente.

O Brasil ainda não está completamente preparado para o Direito 4.0, mas está no caminho para chegar lá. Os alicerces já foram construídos, e 2020 será um ano decisivo para incentivar atores judiciários a explorar o potencial das novas tecnologias, para aprimorar os serviços jurídicos e a própria atividade jurisdicional. Ao expandir o possível adjacente, talvez consigamos, enfim, ajudar o Direito a atingir todo o seu potencial.


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Bernardo de Azevedo

Bernardo de Azevedo

Advogado. Doutorando em Direito (UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Computação Forense e Segurança da Informação (IPOG). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade FEEVALE e da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
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